A necessária missão da imprensa local
No dia 3 de Maio de 2014 participei, na qualidade de director do Jornal de Albergaria durante 18 anos (1993-2011), numa mesa redonda, realizada no âmbito da exposição comemorativa dos 150 Anos de Imprensa Local no Concelho de Albergaria, a decorrer na Biblioteca Municipal. A exposição é um acontecimento imperdível para os albergarienses, que poderão visitar os cabeçalhos e algumas páginas dos jornais que ao longo dos decénios aqui se foram publicando. É sobretudo uma oportunidade para, certamente com alguma surpresa, se verificar como era pujante a intervenção cívica dos cidadãos em épocas recuadas.
Do muito que de importante foi dito nessa mesa redonda, e do longo rosário de dificuldades, em confronto com a profusão de títulos que já se publicaram, ficou a apreensão pelo futuro da imprensa local, e concretamente da imprensa local em Albergaria. No fim de contas, que futuro para a nossa imprensa local?
Importa precisar que um jornal local não é um jornal que se “faz” e se vende numa localidade: ele é “local” em atenção ao seu específico conteúdo, predominantemente virado para os factos e pessoas da localidade que é o seu espaço físico e pessoal de observação.
JORNAL E PÚBLICO LEITOR
A imprensa local pressupõe um binómio incindível: um jornal e um público leitor. Um jornal só existe se houver quem o leia; um público leitor só é leitor se tiver um jornal que lhe interesse ler.
A questão que se coloca terá necessariamente de ser esta: o jornal local surge, porque já há um público para ele; ou o público será leitor, se houver um jornal local que o atraia?
Antigamente, e apesar das elevadas taxas de analfabetismo, em qualquer localidade havia um público leitor para as notícias que lhe importavam mais de perto. A inexistência de outros meios de comunicação, a coesão das comunidades, a importância, elevada, que os pequenos/grandes acontecimentos significavam para as pessoas, a necessidade afectiva dos que emigravam de saberem das coisas da sua terra e dos seus, a pontificação de líderes de opinião (licenciados, professores, proprietários, comerciantes), políticos (os caciques) e não só, intervindo activamente nos assuntos comunitários – eram ingredientes óptimos para que os jornais locais surgissem e proliferassem.
Havia, naturalmente, um público leitor propício a receber o jornal, a “consumir”. E os jornais surgiam, em épocas em que certamente até seria mais difícil conceber a sua existência, considerando a logística da sua composição tipográfica, as dificuldades de comunicação, a censura.
Apesar dos avanços tecnológicos e da informática, hoje as coisas não são assim. São piores.
Dada a frenética mobilidade populacional, com os caudais de pessoas que tão depressa vêm residir em Albergaria (e nas outras localidades é o mesmo), como daqui saem, as comunidades estão desestruturadas e desenraizadas. As pessoas estão cada vez mais de passagem, sem chegarem a criar laços afectivos profundos com uma localidade. Infelizmente, Albergaria derrapa perigosamente para ser uma localidade “de-onde-não-se-é”, ou seja, corre-se o risco de ser uma terra cujos habitantes estão de passagem, sem que alguma vez cheguem a criar raízes.
Assim sendo (ou quando assim for), diminuirá, abaixo do mínimo de subsistência, o público que se interesse pela história de Albergaria, pelos seus antigos, pelas suas tradições ou costumes, pelos seus problemas, pelo seu quotidiano e, pior que isso, pelo seu futuro. E deixará de haver massa crítica que consuma e suporte um jornal local.
O “FAZER-PARTE-DE”
Só que isso é muito perigoso. A desagregação comunitária é um risco imenso e de consequências graves. É, desde logo, a própria negação da sociabilidade, pois as pessoas vivem em comunidade, e é em comunidade que se efectiva a sua dimensão primordial de ser social, de ‘homo gregarius’, enquanto manifestação da própria dignidade da pessoa humana. Sem comunidade, sem a consciência de pertença a um grupo, a pessoa estiola intelectualmente e afectivamente. Acresce que a sua consciência de pertença, de “fazer-parte-de” é um pressuposto básico da própria democracia, como modo de governo da coisa pública, sobretudo na sua configuração mais exigente de democracia participativa, e portanto da sua realização enquanto ‘homo politicus’.
É por isso que a sociedade só se realiza plena e democraticamente desde que os seus elementos participem activamente no seu fluir histórico. Mas para participarem, é necessário que tenham a consciência de a integrar, de pertença.
Ora, qualquer intenção de inclusão, de “fazer-parte-de”, fracassará se não houver o conhecimento do todo social, na sua dimensão histórica e fenomenológica. E aí a imprensa local desempenha um papel ingente, revelando o que foi, discutindo o que é, projectando o que será.
É por esta ordem de razões que a subsistência da imprensa local é um desígnio de natureza pública, isto é, de interesse público, que não pode ser deixado ao alvedrio das regras de mercado, de ser ou não rentável ou sustentável. Deve ser apoiada pela sociedade politicamente organizada, porque (por paradoxal que seja) só assim a imprensa local será livre e cumprirá a sua função de “integrador comunitário”.
E portanto, ao contrário do que acontecia antigamente, em que era o público que fomentava os jornais locais, bem me parece que hoje o sentido tem de ser outro: é o jornal local que, com a sua qualidade, criará o público leitor, contribuindo positivamente para a coesão da comunidade. Mas para ter a necessária qualidade, o jornal tem de ser persistente, o que não é compatível com regras de mercado, de estreita e redutora contabilidade de receitas e despesas. Tem de ser apoiado, porque é do interesse público que se trata.
Mário Jorge Lemos Pinto, Correio de Albergaria, 14/05/2014
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